sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

NÃO ME LEMBRO DA ÚLTIMA VEZ QUE FECHEI OS OLHOS


INT. NOITE – CABINE REPLETA DE TELEVISÕES

Sala cheia de televisores colocados sistematicamente segundo um padrão, um vigilante numa sala em semi-obscuridade, passeia o seu olhar indolente, observando os clientes de um centro comercial ao serem filmados. Ruídos citadinos no exterior; “tic-tac” nervoso de alguns mecanismos no interior.

VIGILANTE I

- Isso! Isso! Vais muito bem miúda! Agora a prateleira B. Muito bem! Bingo! Até parece por telecomando! Bem podia fazer uma aposta sobre a tua próxima escolha!

Numa das televisões a melopeia monótona das notícias diárias, não parece atrair muito a atenção do vigilante.

- Ora bem, isto podia muito bem começar assim. Ela estava a fazer sinais secretos, na esperança que alguém os pudesse interpretar; sentia-se desesperada. Como se não soubesse se o destinatário de tal mensagem fosse entendê-la.

- Batidas na porta. Entra outro vigilante.

VIGILANTE II

- Ainda estás aí Zé?! Sempre com esses teus hábitos esquisitos! O pessoal vai beber umas cervejas. A loja vai fechar e o teu turno acabou, há cinco minutos!

- Sorri

VIGILANTE I

- Já sabes que não vou? Porque insistes?

Abana desconcertado a cabeça.

VIGILANTE II

- Bem fazes-me confusão. Afinal se a vida está lá fora, porque insistes em observá-la nessas televisões?

VIGILANTE I

Sorriso.

Sabes o que é que um realizador necessita para fazer um filme?

VIGILANTE II

- Dinheiro?

VIGILANTE I

- Náaa!

VIGILANTE II

Uma câmara?

VIGILANTE I

- Náaa!

VIGILANTE II

- Dinheiro?

VIGILANTE I

- Náaa! Uma fronteira. O caraças de uma fronteira, um enquadramento. Ou seja um ecrã! Isto!

Dá uns murros em cima da televisão mais próxima.

VIGILANTE II

- Tás a ficar muito vedeta sabias? Se a cerveja e os amigos não te bastam, deixo-te então Spielberg de subúrbio!

VIGILANTE II

Trocista.

- Trago-te umas pipocas para ver a fita? Com ou sem sal?

VIGILANTE I

- Vade retro, vulgum pecus! Volta para a tua ostra de burguesismo e conforto liofilizado.

VIGILANTE II

Retira-se

VIGILANTE I

Vou contar-vos. Por vezes deixava umas mensagens algo parvas para os clientes. Na de especialmente subversivo acreditem. Algo que qualquer um de nós podia encontrar. Depois parece que existiram algumas queixas, não sei muito bem. Algum dos cães de fila da direcção deve ter-me denunciado. Seja como for o que eu fazia talvez fosse um pouco pretensioso. Mas é sempre uma tentação entrar no “filme”. Entrar no ecrã que nunca mais foi gigante.

Um relógio com os números a cor-de-rosa, dá as horas sonoramente. Os ponteiros são duas figuras que parodiam a Daisy e o Gooffy da Disney, em pose sodomita. Volta-se de costas para as televisões. Senta-se numa cadeira e liga e desliga as luzes intermitentemente, a partir de um cabo com um botão, que segura na mão.

- Now you see me, now you don’t. O tempo de vida médio de um filme em condições ideais, será de quantos anos? Certamente algures entre um suspiro humano e a morte de uma estrela.

Apaga as luzes.

- Já não suportamos estar sozinhos. Também sentem isto? Mas as imagens não sangram. Ainda assim continuam, persistem. Marcham por vezes. Penso que nem necessitam de mim para as gerir e montar. Quebrou-se um laço, um elo vital. Já não se faz cinema, apenas juntamos trapos e cacos em eventual benefício de uma arqueologia futura. Por favor! Está aí alguém que possa parar tudo isto?

A imagem segue as ligações eléctricas que como entranhas se espalham pelo chão, até se perder num fadding out.

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